terça-feira, 14 de abril de 2009

Problema seu!

Trabalho num restaurante metido a chic, não se fala alto, não se faz nada que chame a atenção do cliente, normalmente um empresário montado no dinheiro que tenha seu escritório ali pela Avenida de Liberdade, Embaixadores, figurões e a classe alta em geral vivem por lá. Normalmente quando acontece de um bêbado ou mendigo parar na porta, o gerente de forma educadíssima retira-o imediatamente sem que os clientes enxerguem, nunca o vi usar violência. Sábado por exemplo apareceu um que rapidamente subiu avenida acima sem tão-pouco ser notado pelos turistas alemães e espanhóis que passavam o feriado em Lisboa. Hoje, mal a sala começa a compor-se, entra uma senhora, seus oitenta e muitos anos, magrinha do olho bem azul, de chapeuzinho na cabeça e chapéu-de-chuva, gabardine azulinha e luvas, óculos e ar de muito frágil. Entrou e imediatamente sentou numa das cadeiras do hall de entrada. Minha colega foi lá ter com ela. Voltou trinta segundos depois a dizer que a senhora queria comer um pão e um copo de leite. Falou ao gerente o mesmo disse que ali ela não podia comer, que fizessem um galão e dessem três ou quatro pãezinhos do couvert com manteiga e queijo e ela que comesse na praça. Minha colega pede que eu vá avisa-la, eu passo a tarefa para outro colega e essa altura já meu coração estava cheio de uma coisinha que algumas vezes me dilacera de forma irreversível. O colega volta a dizer que ela ficou sem entender o porque de não poder comer ali. Mal ele acaba de me falar ela já estava frente a frente comigo. Eu tentei explicar mas ela parecia sofrer de Alzheimer, não falava coisa com coisa, queria um copo de leite, eu explicava que aquilo era um restaurante, ela pedia a carta…

Eu fui ao meu superior e expliquei a situação ele disse “RESOLVA”, apesar de estar no mais subalterno dos papeis tinha em minhas mãos, logo nas minhas uma tarefa que era dele o gerente. Tentei de todas as formas explicar a senhora, ate me ofereci a leva-la a um café ou pastelaria, ela achou que era um outro balcão ali mesmo, fomos ate o meio da sala, expliquei que era já na proxima esquina, ela volta pra trás, aquela mulher pequenina, quase um cristal a minha vista e com tanta força sobre mim. Minha colega chega com os pães dentro do saco e um copo de leite. Ela vai ao balcão. Pergunta para mim se pode comer. Meus colegas a observarem -me com desespero e a olharem para o “escritório” do chefe (o lugar onde ele costuma estar). Digo que infelizmente não mas que ela pode sentar num banco ali mesmo em frente em baixo de uma árvore. Nesse momento ela me olha séria e com a voz partida e diz-me num português riquíssimo e de forma aristocrata que aquilo é um completo disparate e que não tinha cabimento uma senhora como ela comer na rua. Pediu pra chamar o meu superior.

Um misto de alívio e dor me deu gana pra chegar ao tal sitio e cuspir quatro palavras sem nem olhar pra cara dele. ELA QUER FALAR CONTIGO. E me afastei. Ele chega com um sorriso nos dentes, como se não soubesse do que se passava, puxa uma cadeira da mesa, senta-a oferece uma carta, passa por mim diz para servir a senhora.

Ela tirou a gabardine, pois uns óculos mais estreitinhos e foi lendo devagar cada linha da ementa. Escolheu um risoto e bebeu água. Durante minhas idas a mesa falou-me que tinha família no Brasil, que adoraria conhecer minha terra, que nasceu numa terra em África com um nome de um santo homem que na hora eu nem se quer ouvir. Eu só queria uma explicação dos colegas. O porque desse mal entendido com a senhorinha. Ela não estava a pedir esmola e mesmo se sim, por Deus, ela era uma criatura indefesa. E a raiva de ter sobrado pra mim um papel que preferia não ter. Porque logo eu. Quando ela foi embora levei-a a porta com uma vontade enorme de chorar. Ela agradeceu ao gerente, deixou gorjeta e ao sair deu-me um aperto de mão, sorriu e acenou um adeus tão frágil e quebradiço quanto ela. Eu voltei pra sala puto com todo mundo e parece uma coisa, quando alguém faz uma besteira e o outro paga o pato, fica tentando explicar e remendar a situação, como aconteceu com meus dois colegas e eu só queria esquecer esse momento.

Talvez esta senhora e eu nunca saiamos da lembrança um do outro e pela mais injusta forma. Ela por talvez me ter como um insensível e eu por me ver preso a uma cadeia de poder onde é sempre o mais inferior que vai se fuder enquanto o verdadeiro algoz no último momento sorri oferece a cadeira e lucra com a situação.   

2 comentários:

Emaranhados da Alma disse...

Um dia quando trabalhava numa loja da FIAT um senhor entrou de bermuda, chinelos e ninguém queria atender ele pq seria perder tempo. Eu me aproximei educadamente e conversei com ele. Educadamente ele me agradeceu a atenção e disse que o comportamento dos meus superiores fizeram a loja perder a venda de 2 fiat stilo, na época lancçamento. Dias depois ele voltou pra me mostrar um dos carros que acabara de comprar na concorrência... Com certeza não foi ele que saiu perdendo na história né!?

Anónimo disse...

Enquanto, por dentro, continuares a pensar que aquela senhora, mesmo estando a pedir esmola, podia sentar-se à mesa e comer apenas o pão e o leite, há sempre uma cadeia onde ocupas lugares cimeiros.
E acredita...é a cadeia mais importante de todas e onde todos têm lugar...Uma cadeia que não dá salário, mas dá sentido, senso e direito a dormir tranquilo.

Um abração, Jaimão!